Naquela pacata cidade do interior
ninguém imaginava que Dorotéia faria o que fez. Ninguém mesmo! Nem o Padre
Adalberto. Dorotéia, moça recatada. Tímida. Quando saía de casa para ir à missa
atravessava a praça com a cabeça escondida entre os ombros. Na cidade ninguém
conhecia seu olhar. Nunca dera ousadia a ninguém. Mas em que lugar deste mundo
não há um alcoviteiro? Em todo canto. As más-línguas falavam. Diziam que ela
cobria o corpo todo com aquela roupa preto grafite até a cabeça por sofrer de
um amor não correspondido. Um abandono amoroso bem no início da adolescência. Gervásio, o chalaça do lugar, dizia de boca
cheia que tinha visto a moça há muito tempo se banhar na Lagoa da Serra. Dizia
ele, corpo escultural. Ninguém no lugarejo acreditava em Gervásio por contar
muita mentira. Mentiroso de mão cheia.
Além das missas, que Dorotéia não
perdia todos os dias no mesmo horário, ela também visitava o confessionário de
Padre Adalberto. Do seu trajeto, que consistia vir do final da rua principal da
cidade até o Largo da Matriz, Dorotéia caminhava impecável. Lentos passos... o
braço junto do corpo se movia a cada passo com leveza. Os homens suspiravam, os
olhos das mulheres eram invejosos. Elas também invejavam aquela solidão retida.
Que segredo guardava Dorotéia, perguntavam-se as mulheres da vila. Às três da
tarde em ponto ia rumo ao confessionário, sentava-se espartanamente e
conversava com o padre com voz baixa e suave. Uma única vez um deslize, e aqueles
que estavam na fila do confessionário viram algo da moça em apenas um lapso de
segundo: um descuido e o seu véu preto caiu. Antes que chegasse ao chão pegou-o
no ar e cobriu o rosto novamente. Todos
viram uma lágrima correr pelo seu rosto. Porque aquela lágrima? O que ela revelava?
Da casa da
família de Dorotéia ninguém ouviu um barulho naquele Carnaval. Eles ouviam marchinhas
antigas, soube-se depois, mas ouviam com extrema discrição. O volume da vitrola
era tão baixo... Há alguns anos a família morava ali e ninguém se aprazerava da
amizade dos moradores daquela casa. Janelas fechadas que se abriam em raras
exceções. Apenas quando a procissão passava e mesmo assim nem sempre a janela
se abria. A família de Dorotéia viera morar na cidade vinda da cidade grande. Da
metrópole. Na igreja sentavam-se religiosamente nos bancos da frente o pai, a
mãe e dois irmãos. O silêncio e a
educação daquela família provocavam urticárias na língua dos beatos e beatas.
Que segredo guardava aquela família? Os maledicentes inventavam histórias
fantasiosas. Será que eles teriam vindo fugidos da polícia? A completa discrição da família de Dorotéia
incomodava os invejosos.
Naquele dia em que o véu caiu e
Dorotéia ficou desprotegida, a conversa dos fofoqueiros da fila da confissão
beirava a loucura: alguns diziam que a moça era bela, cabelo comprido e preto,
os olhos castanhos e os lábios grossos. Somente Valdirene dizia que Dorotéia
era nariguda e feia. Pura inveja. Feia era Valdirene. Solteirona rancorosa. Mexeriqueira.
Uma coisa pode-se dizer tranquilamente – Dorotéia era linda.
Com a chegada do Carnaval a rua
principal se enchia de foliões. A cidade, que não tinha mais do que dois mil
habitantes, neste período de festa pagã chegava a vinte mil. Muita alegria. O
que os moradores não sabiam era que aquele carnaval seria diferente dos outros.
Bem diferente, mas não trágico...
Na terça-feira de Carnaval, a
casa silenciosa reverberava marchinhas estridentes. As janelas estavam
escancaradas e o “Pierrô Apaixonado” era ouvido na outra extremidade da rua.
Barulho incomum naquela casa, mas tanto o barulho como as brincadeiras de lança
perfume e a algazarra não foram percebidos pelos foliões. Ninguém se atreveu a
dar uma olhadinha pela janela aberta, nem mesmo se importou com a novidade
estranha, pois blocos e mais blocos passavam pela rua chamando quem quer que
estivesse por ali para a folia.
A música alta na casa só foi
percebida na manhã de Quarta Feira de Cinzas. Quando os moradores começavam a
despertar e caminhavam para a missa, os curiosos começaram a se aglomerar na
frente da casa. Ninguém se aproximava da janela escancarada, enquanto as
marchinhas continuavam ecoando pela rua sem nenhum pudor. “Olha a cabeleira do
Zezé, será que ele é...” “Quanto riso, oh, quanta alegria, mais de mil palhaços
no salão...” “Ei, você aí, me dá um dinheiro aí...” A urtiga das beatas
aumentava assustadoramente a cada nova marchinha. Não demorou em surgir a
pergunta no meio da multidão: “- Quem tem coragem de entrar na casa para ver o
que está acontecendo?” Antes que alguém fosse indicado pelos curiosos, Gervásio
saltou como um gato e soltou um grito. Eu!
Começou a “entração” de Gervásio
na casa, cômodo por cômodo. Depois de alguns minutos o alcoviteiro apareceu na
porta da frente com os olhos esbugalhados. A multidão se espantou. Alguém exclamou: “- O
que aconteceu?” Gervásio sem cor e sem voz disse ter sumido todo mundo da casa.
Não tem uma alma viva na casa. Até os móveis sumiram, menos a vitrola que
tocava marchinhas. Espanto geral. Será que foram sequestrados? Será que foram
abduzidos? Perplexidade! Toca o sino da igreja e os fieis caminham para a Missa
de Cinzas cabisbaixos e com conversas entre lábios. Ninguém naquele momento
teve coragem de dizer um nada sobre o sumiço da família de Dorotéia.
Quando Gervásio se atreveu a
falar alguma coisa, um psiu autoritário soou do meio do povo e sua fala foi
cortada pelo meio: “- Será que foi o...” Psiu! E todos ali caminharam para a
missa. A igreja enfeitada. Os coroinhas em prontidão. O coral e a pequena
orquestra esperavam a chegada do padre. O padre que era rígido com os horários e
não aparecia. Nos anos de paróquia Padre Adalberto nunca tinha se atrasado. Nem
quando estava doente se atrasava. Os fieis
estavam inquietos, queriam se limpar dos pecados da festa pagã. Dona Antonieta, fervorosa em sua fé – fé que
era proporcional à sua língua maledicente – soltou um “Será que é o que estou
pensando?”. Ela não gostava do padre por motivos não sabidos no povoado...
Antes que Dona Antonieta
continuasse com seus pensamentos maldosos os primeiros acordes da orquestra acabaram
com as conjurações contra o padre. Quando ele entrou acompanhado dos coroinhas
e os cânticos religiosos, o público na nave da igreja se espantou. Cadê o Padre
Adalberto? O que ali entrara era seu substituto! Murmúrios tomaram conta da
igreja. Uma voz mansa perto da sacristia
dizia, “será que Gervásio e Dona Antonieta tinham razão em suas elucubrações?”
Uma voz mais suave do que a outra dizia “não passa de divagações destes
fofoqueiros.” Outra voz com um tom sarcástico indagava, “será?”.
Em questão de minutos os boatos
com a ausência do padre na Missa de Cinzas e o sumiço da família de Dorotéia se
espalharam pela cidade. Como a mente humana é perversa, principalmente quando
pode existir a possibilidade de um amor verdadeiro! Evaldo, o cocheiro, dizia
abertamente para quem quisesse ouvir: Padre Adalberto e Dorotéia tinham fugido
no sábado de Carnaval. A fala do cocheiro continha inveja e ódio. Evaldo era
louco por Dorotéia. Um amor platônico, nunca correspondido.
Ambos tinham realmente fugido
juntos. Padre Adalberto era aquele amor adolescente de Dorotéia que simplesmente
sumira. Ele não tinha ido embora como imaginara Dorotéia. Tempos depois ela
ficara sabendo que os pais do rapaz trabalhavam na construção da ferrovia que
crescia para o interior. Anos de busca do seu amor e Dorotéia descobriu que
Adalberto tinha se ordenado padre em uma pequena cidade. Um detetive pago pela
família havia descoberto seu paradeiro. Isso explica a chegada repentina desta
família ali no povoado. Mas até hoje, a única coisa que os moradores da cidade
sabem é que de fato eles tinham fugido. Ninguém nunca soube dos detalhes deste
belo reencontro.
O reencontro de um amor do
passado só presta saber aos envolvidos. Ninguém na cidade sabe como eles
viveram depois do desaparecimento. Tiveram filhos? Foram felizes? Há
sentimentos na vida que só interessam aos que os sentem. O sumiço da família
foi planejado antes que descobrissem o amor entre Adalberto e Dorotéia. Não
queriam passar nenhum tipo de constrangimento. Outras histórias apareceram na
pacata cidade. Mentiras. Invejosos. Para alguns é tão difícil entender o que é
o amor. Nem toda história de amor tem um final feliz. Esta até onde sabemos
teve um. As línguas maledicentes jamais apagariam a beleza deste amor entre
Adalberto e Dorotéia.
Uma única dúvida restou: por que
a família deixara para trás a vitrola tocando marchinhas? Por quê?