Antonia Gomes da Silva, mulher da
roça. Bonita. Morena, quase negra. Vinte anos de idade. Mulher com a cor da
roça, que ganhara essa beleza sertaneja labutando de sol a sol. Moça do sítio. Assim
intitulam aqueles que moram na cidade. Roupa simples. Vestido de chita, que
realçava sua beleza cabocla. Antonia, de comportamento recatado, com seus
sonhos e desejo de morar na cidade e mudar de vida. Cansada da roça. Nunca
poderia imaginar que esta mudança do sitio para cidade marcaria tão profundamente
sua existência.
É comum quando uma rapariga da
roça troca o sitio pela cidade, que seja para ajudar no sustento da família.
Trabalhar. Conforme o tempo, o sítio não supre o sustento necessário da
família. Raramente esta ida do campo para a cidade é para estudar. Às vezes até
acontece essa coisa de fazer a troca e de dar continuidade nos estudos. Não era
o caso da moçoila Antonia. Ela foi para a cidade realmente para trabalhar e
ajudar nos gastos da casa. Estudo, nem pensar. Entre os cincos irmãos ela fora
a escolhida para deixar a casa da família, por não ter muita intimidade com a terra,
apesar de não negar trabalho.
Tem gente que não acredita que
existe destino. Penso que ele existe e ainda se cruza com outros...
Dr. Roberto, médico conceituado
da pequena cidade de Palestina, no interior de São Paulo. Não imaginava que aquela
mulher morena, marcada com a cor forte do sol, fosse entrar na sua vida e marca-la
tão profundamente. Existencialmente. Dr. Roberto, além de médico respeitado,
era fazendeiro bem sucedido na criação do gado. O café da sua fazenda era premiado
internacionalmente. Zeloso. Café de boa qualidade. Beto, como era chamado pela
gente do povoado. Gostavam de chamá-lo assim. Ao chamá-lo de Beto criavam uma
relação de proximidade e intimidade. O “doutor” o deixava distante e o Beto era
um homem como qualquer outro.
Homem vaidoso quando a prosa era
coisa da sua fazenda. Do queijo que produzia. Dos prêmios que seu gado ganhava
nos concursos pecuários. Parecia um pavão com peito estufado de tanto que
gostava do seu belo pedaço de terra. Sem cerimônia. Gostava de coisas simples. Uma
cachaça do seu alambique. Apreciava. Com orgulho! Nunca deixava de atender quando
era chamado para socorrer um enfermo. Sempre cumpridor da sua missão. Quando
não auxiliava as parteiras na divina tarefa de trazer gente nesta terra, ele
próprio fazia o parto. Era adorado.
Habituou-se, em quase todos os
dias da semana, logo de manhã, a tomar café feito no fogão à lenha no Boteco do
Zé Bigode. Só no domingo não cumpria este ritual diário, tomava café com a
família e depois iam à missa. Religiosamente. Homem religioso. Mas durante a
semana, ali no bar do compadre Zé, conversava com todos. Contava piada. Homem
de boa prosa. Indicava o nome do melhor remédio para acabar com os carrapatos
do gado dos sitiantes. Toda esta convivência diária com gente da roça não lhe
tirava a autoridade como médico. Respeitado por todos. Homem incansável na
atividade de curar as mazelas do povo dali. Muitos sitiantes procuravam-no para
se aconselhar. Muitos outros o procuravam para que ele pudesse arrumar uma colocação
de emprego na fazenda ou mesmo na cidade.
Foi com essa coisa de arrumar
emprego que ele conheceu seu Geraldinho, sitiante daquela região. Anos antes
tinha empregado um dos seus filhos. Num certo dia, depois da prosa sobre o
melhor tratamento dos suínos, Geraldinho, com toda intimidade que tinha com o Sr.
Beto, solicitou-lhe ver a possibilidade de arrumar um serviço em sua casa na
cidade para sua filha Antonia. Justificou o pedido dizendo que o doutor sabia
que seus filhos eram trabalhadores. “Justino nunca lhe decepcionou. Não é?” “Mande
a menina falar com a patroa, seu Geraldinho. Parece que ela está mesmo
precisando de alguém para ajudar na cozinha.” Foi assim que a moça Antonia
começou a trabalhar na casa do seu Beto. O dinheiro que ganhava mandava para a
família e pouco desfrutava.
Com pouco tempo de serviço na
casa de D. Elvira, esposa do Dr. Roberto, Antonia destacou-se como ótima
cozinheira. Quituteira de mão cheia. Ganhou a simpatia da casa. Dr. Roberto
tratava todos os funcionários com respeito e era por eles considerado um excelente
patrão. E assim, os anos foram-se passando. Os filhos nasceram, a esposa se
foi.
D. Elvira faleceu ainda jovem,
com um câncer que em poucas semanas lhe tirou a vida. Antes da morte da esposa,
o senhor Beto jamais tivera atrevimento com Antonia. Porém, com o passar do
tempo, foi se afeiçoando pela empregada que agora fazia o papel de mãe. Cuidava
dos filhos do patrão como se fossem seus. Os olhares. O sorriso maroto com o
canto dos lábios denunciava que ali Já existia um grande amor. Em um momento de
intimidade com Antonia anos depois, ele disse sussurrando que ela tinha lhe
chamado a atenção. Que sua beleza era impactante. Enchia os olhos. Terminou a
conversa dizendo que a amava. Apesar de ele estar viúvo, aquele amor tinha que
ser escondido. Os filhos dele não aceitariam que o pai se casasse com a
empregada da casa. O amor deles era intenso, mas escondido.
Não demorou que eles tivessem um
caso às escondidas. O doutor pensava em
como reagiriam os filhos diante daquela paixão. Como explicar ao pai de Antonia
que ele estava apaixonado pela sua filha? O medo e a insegurança o fizeram
manter aquele romance escondido. Este tempo escondido teria sua validade
vencida. Antonia engravidara do seu amor oculto.
O destino faz as pessoas se
cruzarem em suas existências, mas também as distancia. Quando o pai de Antonia
ficou sabendo da gravidez da filha, disse em alto e em bom som que não tinha
filha desonrada. “Desavergonhada! – gritou para ela. Esqueça que sou seu pai.” E
antes que o Dr. Roberto ficasse sabendo que ela estava grávida, Antonia abandonou
a casa. O médico só ficou sabendo da sua gravidez pela conversa dos
alcoviteiros. Antonia saiu da cidade sem rumo, e durante boa parte da gravidez
percorreu o interior paulista até chegar a São Paulo. O doutor, inconformado
com o seu desaparecimento, pôs gente atrás. Aonde aparecesse uma noticia de Antonia
ele ia, a fim de encontrar seu grande amor. Mas talvez agora fosse tarde
demais.
Antonia chega a Santos com dores
de parto. O bebê estava prestes a nascer. Dilatação. Os moradores a encaminham à
casa de D. Maria, uma senhora que conhecia tudo sobre ervas e reza. Ali poderia
receber atendimento. Poderia ser acalentada. Na casa de D. Maria, sofrendo com
as dores do parto cada vez mais fortes, espera por poucos minutos a parteira mais
conhecida da cidade, D. Catarina. A jovem Antonia confessa a D. Maria que não
poderia ficar com aquele filho, pois não teria como criá-lo. As lágrimas tomam
conta dos seus olhos e ela diz, gemendo de dor, que não era este o seu desejo.
Enquanto ela é preparada pela
parteira, D. Maria corre até a vizinha que tinha uma vontade louca de adotar
uma criança. Antes de o bebê vir ao mundo, o casal – Pedro e Ana – corre para a
casa de D. Maria para assistir ao parto e ficar com a criança. Realizados.
Nasce o bebê. Um menino mirradinho.
Chorão. A mãe, com a voz embargada, pede para D. Catarina não deixá-la ver a
criança: não gostaria de guardar sua imagem na memória. O casal recebe o menino
em seus braços, os olhos brilhando, e a alegria toma conta de Ana e Pedro. A
mãe mal fala com o casal, só pede que criem o menino com muito amor.
Antonia teve uma gravidez difícil,
tomada pela solidão. Depois de recuperada partiu em busca de reconstruir sua
vida. O que aconteceu com Antonia? Será que encontrou Beto novamente? Conta-se
que meses depois ela apareceu na casa de D. Maria, acompanhada de um senhor, em
busca do filho. A senhora que atendeu a
porta da casa disse que o casal que o adotara tinha se mudado da cidade e não
sabia de seu paradeiro.
Será que o senhor que a
acompanhava era o Dr. Roberto? Nunca saberemos. Imagino a dor e o sofrimento de
uma mãe que deixa de criar um filho porque as circunstâncias são adversas.
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