Venha compartilhar um pouco do trabalho que realizo como historiador e professor da cidade de Cotia. Mergulhe no passado das pessoas que construiram este lugar, recorde fatos marcantes que deram identidade cultural a esta cidade.

terça-feira, 11 de outubro de 2016

CRIANÇADA, HOJE TEM ABRAÇO!


Tenho dois motivos que me levaram a escrever este texto com muita alegria: dia doze de Outubro é dia das crianças e aniversário do meu lindo filho Ícaro. Grande filho! Diferente dos outros textos que escrevi sobre este tema, exaltando este dia, pretendo propor uma reflexão sobre nossas crianças e o consumo ensandecido.(Em época de crise nem todo mundo está inserido no mercado de consumo, nem todo mundo pode presentear seus filhos.)Aos pais desempregados, digo que não se culpem por não poderem dar um presente para seus filhos. Pai que está desempregado, tenha uma boa conversa com seu filho. Um abraço também é um presente neste momento de dificuldade. Não se sinta desprestigiado por não poder presenteá-lo.

Apesar de presente ser importante, podemos passar outros valores neste dia de alegria. Não se esqueça de que o presente é apenas simbólico. Ele preenche o emocional momentaneamente... O importante é saber como está a vida da sua criançada. Como estão na escola. Com quem estão andando? Quem são os amigos? O abraço que eu já falei parece um gesto simples, mas demonstra
sentimento de proteção, como se você, pai, dissesse“filho, estou aqui para o que der e vier”.Como é bom ouvir isto de alguém!Como é bom um abraço!

Um presente, mesmo que seja simbólico, também marca se estiver envolvido de bons sentimentos. Com esta crise, muitos pais não vão poder presentear seus pimpolhos, alguns já adultos (risos). Presenteie-os dando atenção! Converse com a criançada porque este ano não será possível o esperado presente. Quando a gente conversa com nossos filhos, desenvolve uma imensa capacidade de falar e ouvir. Puta presente meu! Ouvir! Os filhos têm tanta coisa para falar...

Pra você, meu filho que faz aniversário no dia das crianças, este ano não vai ser possível um presente. Só para lembrar, temos uma história juntos. Lembro-me de quando o levava para a escola e trocava suas fraldas no meio das alunas de História. Um companheiro. Tenho dificuldade de ouvi-lo,pois os pais quase sempre acham que os filhos têm pouco a ensinar. Engano! Posso ter minhas dificuldades, mas coloco reparo como você tem cuidado da sua mãe e da sua irmã mais nova. Tomo reparo nos conselhos que você me dá, com inteligência e bom senso. O meu presente é um abraço e dizer que te amo e tenho muito orgulho de você.


É bom lembrar que criança, não importa a idade, tem muito ciúme. Um abraço para a Roseli, que vai ser mãe.Vou ser avô duas vezes este ano. Ana Paula, que pronuncia aquele pai estridente, que adoro, que me chama de pai desse jeito de criança grande. Um abraço para a Isadora e para a Maria Karolina, meus amores. E um abraço para a criança Gerlaine, que vai ser mãe logo, logo!Aquele abraço a todos!

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

HISTÓRIA DE ELIANE: MENINA DO PANCADÃO


Eliane estava absorta em seus pensamentos. Uma viagem ao passado. De cima da laje, avistava as casas ainda semi-acabadas, e a sua existência passava ali como um filme que lhe trazia recordações amargas. Lembranças da pré-adolescência. Lembranças da adolescência. Lembranças da vida adulta que se misturam com toda sua história criando a possibilidade de que tudo poderia ser diferente. Sentimentos de culpa.  Três filhos antes de completar 23 anos. O envolvimento com droga e álcool por longo período afetara-lhe o raciocínio. Uma dificuldade imensa para terminar um pensamento. Lamentava insistentemente como tudo poderia ser diferente.

Aos treze anos, grávida, nasce João, pai desconhecido. Durante dois meses tenta esconder a gravidez dos pais. Ficara grávida em um pancadão de final de semana. Completamente bêbada e drogada, dançava alucinadamente em cima de um carro e a cada música tirava uma peça de roupa. A transa acontecia ali, na frente de todos. Uma transa, outra e mais outra, assim atravessava a noite. No dia seguinte a angústia. No dia seguinte, a culpa. Não lembrava com quem tinha tido uma relação amorosa. Não lembrava nem se tinha tido relação sexual. Eliane se sentia um lixo. Travava uma luta interna durante a semana, dizendo-se que não iria ao pancadão do final de semana. Quase sempre perdia a luta.

Começou a frequentar estes bailes de rua com onze anos, escondida dos pais. Quando os pais dormiam, depois de um cansativo dia de trabalho, pulava a janela do quarto e os amigos já a esperavam na esquina da rua da sua casa. Os pais, cansados de tanto do trabalho, viam a educação da filha ficar cada vez mais distante das suas mãos. Aos quinze anos outro filho. Nascia Vanessa, pai desconhecido. Filha do pancadão. Os pais aceitaram mais um neto sem qualquer questionamento. Sentiam-se impotentes diante de tal situação. Sentiam-se culpados, e a única forma de pagar era com a omissão. Eliane, alcoólatra e viciada em drogas pesadas, não conseguia se ver fora daquela situação. Ali era seu universo, mesmo que fosse destrutivo. Não percebia sua autodestruição. Ali era seu mundo. Não conhecia outro mundo a não ser aquele.  

Eliane tentava buscar na memória sua infância, que parecia estar tão longe, diante da sua pouca idade. Outra gravidez aos dezoito anos. A memória da infância se distanciava cada vez mais. Agora nascerá Pedro. O pai, Humberto, com apenas dezenove anos. Alcoólatra e viciado em drogas pesadas. Além de Pedro era outra boca para ser sustentada pelos pais de Eliane. Até o nascimento de Pedro, rolava o maior amor entre Eliane e Humberto. Um breve tempo depois do nascimento do terceiro filho, as agressões.  Eliane suportava tudo com resignação. Aquela vida era seu destino, que deveria ser seguido à risca. Um tempo depois Humberto aparece morto, jogado em uma vala como um animal. O motivo seria uma dívida que não conseguira pagar. Mais um número nas estatísticas, sem vida e sem alma.

A menina do pancadão já estava cansada e velha com 23 anos de idade. Já não era carne nova, como diziam no meio... Já não servia para dançar em cima dos carros. O corpo amarrotado pelo tempo. A rusga de quem tem muita idade já não convence quem deseja carne nova. Refugo! O cheiro do álcool e a droga barata já não atraem. Os amigos e amigas de antes já se foram ou estão em situação igual à de Eliane. Mercadoria passada. Uma última tentativa de reconquistar a vida aparece no final da rua, onde morava o padre da igreja. Os cânticos chamaram-lhe a atenção. Começa a frequentar aquele espaço sagrado e tem a promessa que Jesus lhe salvaria das suas mazelas. Por duas semanas sem uso de drogas e bebidas, lúcida da sua bagagem pesada, na laje, sob o olhar da lua, corta os pulsos. Foi encontrada no dia seguinte sem vida. As crianças crescem e estão bem, com a ajuda dos avós. Apenas mais uma vida...

terça-feira, 23 de agosto de 2016

AMIGO ESQUSITO


O meu amigo esquisito chamava-se Antonio Carlos de Jesus e era um sujeito de pouca conversa.  Andava todo torto.  Relaxado. O rosto todo repleto de espinhas. Mesmo no calor ou no inverno, andava com uma touca de lã colorida na cabeça. Achava aquilo ridículo, mas nunca tive coragem de dizer. O cara queria ser esquisito mesmo!  O único com quem conversava na sala de aula era comigo. Gostava de rock e abominava pagode e música sertaneja. Aquele rapaz escrachado, todo relaxado e às vezes agressivo com as palavras, colecionava pétalas de rosas. Inacreditável: o cara tinha mais de duas mil pétalas de rosas em saquinhos plásticos, separadas individualmente.

O esquisitão do Antonio Carlos chamava os meninos da sala de “burguesinhos” e as meninas de “patricinhas”. Não escondia de jeito nenhum que não gostava daquela gente. Os alunos da sala de aula morriam de medo dele. Ele era um tipo ameaçador. Fazia altos discursos: “Todo mundo é igual aqui.” “Vocês não têm nenhum referencial. Agem pela onda do momento da moda. Não conseguem se vestir e nem falar diferente um do outro. Babacas!” Era o tempo todo ameaçador com os amigos de sala. Era o tempo todo questionador. Com os professores, dirigia-se a eles chamando-os de “senhor”. Era respeitado pelos professores. Era ou não era um cara esquisito? 

Durante o tempo em que esteve na escola manteve essa postura de durão. Cara fechada e de pouco amigos. Um dia aprontou uma brincadeira, oferecendo maconha aos alunos da sala. Muitos compraram aquele saquinho bem embalado e ao abrir se deram conta de que era bosta de cavalo seca. Os enganados tentaram uma revolta quando foram alertados pelo Carlos de como iam justificar que tinham comprado maconha aos professores e aos pais. Os alunos com cara de besta desistiram da ideia. Carlos era um cara sarcástico. Tinha um prazer imenso em lubridiar aqueles alunos soldadinhos, como ele mesmo dizia.

Carlos, além de colecionar de pétalas de rosas, era um apaixonado por leitura. Sempre tinha uma história diferente para contar quando parávamos para conversar. De tanto ouvir suas histórias, peguei gosto pela leitura. O esquisito talvez não fosse tão esquisito assim. Uma única vez abaixou a guarda de durão e me contou que depois que seus pais tinham se separado, resolveu viver solitariamente. Resolveu não ter amigos. Não entrou em detalhes sobre a separação dos pais, e eu nunca quis saber o porquê. Neste dia sua fisionomia mudou completamente e chorou em silêncio para que ninguém percebesse sua dor. Foi a única vez que deixou transparecer alguma das suas fraquezas.  Até hoje não entendi porque me escolhera como o único amigo da escola.

Pensava eu que não soubesse o porquê da escolha daquela amizade. Com o tempo fui percebendo que também eu era diferente. Não tinha amizades na escola. Ficava em um canto qualquer, junto da parede, para não ser percebido. Eu e Carlos éramos iguais. Tínhamos escolhido a solidão. Antonio Carlos sumiu da escola por uma semana, e mesmo sendo antissocial os alunos da sala perguntavam por ele. Sentiam sua falta. Com ele na sala as aulas se tornavam mais interessantes. Depois desse tempo o esquisito reapareceu, com hematomas nos braços e o rosto inchado.  Quando questionado pelo seu tempo de ausência pelo Professor Malaquias, disse que tinha caído de bicicleta. Um acidente. Na hora do intervalo das aulas me confessou que tinha sofrido agressões do padrasto. Só ouvi seu lamento e não perguntei nada sobre o acontecido. Naquele dia disse que queria desistir da vida. Fiquei em silêncio. As lágrimas corriam dos seus olhos como uma cachoeira. O sinal do intervalo tocou e entramos na sala em completo silêncio. Não tocamos mais no assunto.

Dias depois, antes do término do ano letivo, Antonio contou-me que estava de mudança para outra cidade. Que aquele dia seria o seu último dia de aula na escola. Pediu-me para não contar para ninguém da sua partida. Respeitei seu desejo. Quando os alunos perceberam que ele não apareceria mais na escola, começaram os falatórios. Comentou um menino com cara de alcoviteiro: “- Fiquei sabendo que o esquisitão foi recolhido em um reformatório. Com aquele jeito só podia ter acontecido isto mesmo!” Outro comentou: “- O cara de espinha era folgado. Estamos livres dele.” Uma menina disse que ele era muito legal, os meninos quando ouviram o comentário, ficaram com cara de entojo. Um bando de despeitados.

Anos depois encontrei Antonio Carlos de passagem pelo aeroporto de Manaus e nos falamos bem rapidinho. Bem diferente do esquisito da escola, ele estava vestindo um terno bem cortado e usava uma pasta de couro do bom. Disse-me que tinha uma família linda, tinha estudado advocacia e que a vida tinha mudado muito. Estava embarcando para a Europa para fazer um curso de especialização na área do direito. Trocamos o número dos celulares e ele partiu apressado para seu vôo. Quando ele sumiu entrando na sala de embarque, me deu uma alegria enorme de ter reencontrado meu melhor amigo de escola. Como aquele amigo esquisito tinha até então perturbado minha mente! Achava que tinha morrido. Achava que tinha se transformado em gente ruim. Nada disso tinha acontecido.

Meses depois marcamos um encontro com nossas famílias e passamos um final de semana maravilhoso. Conversamos horas a fio. Demos risada da turma da sala. Ele se lembrou do dia que vendeu bosta de cavalo como maconha. Rimos muito. Não falamos de tristeza. Não tocamos no assunto das lágrimas, da sua esquisitice. Me pareceu que isso ainda era dolorido. Mas sua história teve um final feliz. 

  

terça-feira, 9 de agosto de 2016

O QUE É QUE ELE TEM: SÍNDROME DE APERT


Li com intensidade o livro da cantora Olívia Byington sobre sua vida com seu filho João. Li cada palavra do livro da mãe Olívia Byington sobre sua lição de vida com seu filho com Síndrome de Apert. Depois de cada palavra lida, cada frase e parágrafo apreciado fizeram-me parte da sua família. Emocionei-me. Nunca imaginei que a cantora erudita e popular Olívia Byington, que despontou na carreira no início da década de 80, bela voz e linda mulher, teria vivido um drama com o nascimento do seu primogênito.

Uma síndrome rara. Os amigos dos bons momentos desapareceram. Outros amigos arrumaram alguma fraqueza (desculpa) para não aparecer. Os poucos amigos que ficaram foram companheiros. Olívia e João travaram uma luta incessante pela vida. Enfrentaram preconceitos. Neste caminho de aprendizado, encontrou gente civilizada. Também encontrou gente desumana. O menino de cabeça grande e mãos de pato era todo diferente fisicamente das crianças ditas “normais”. Porém, pulsava ali uma alma que com o tempo aprendeu a lidar com as adversidades que os normais “colocam" para quem é diferente. 

Um livro surpreendente. Seu companheiro acompanhou a luta e esteve junto com Olívia na busca de uma melhora na qualidade de vida de João. Viajaram muito. A família criou uma onda de solidariedade para cuidar de João. A cada cirurgia, mais de vinte, João revelava o quanto a vida deveria vivida com intensidade.  Não espere nas páginas deste livro autocomiseração, ou coisa parecida. Olívia foi guerreira. A cada movimento, muitas tentativas com o intuito de elevar João a uma condição melhor de vida.

Enfrentou instituições de ensino conceituadas, porém preconceituosas. João perambulava pela casa com sua mochila para ir à escola. Era seu desejo. Olívia se angustiava. Existe muita escola por aí que fala de humanidade só na fachada. Este livro, escrito pela mãe Olívia Byington, eu recomendo aos reclamões que dizem que nada está bom. Neste mundo da aparência o que vale é a casca. João é alma e lição de vida. A mãe de Olívia, outra mulher extraordinária. João teve muita gente extraordinária na sua vida.

Leia este livro pensando em nossas falhas como seres humanos. Precisamos melhorar muito para aceitar quem vem ao mundo diferente de nós. João é fanático por carros. Confesso que cheguei ao final do livro acreditando em uma vida melhor neste mundo pós-moderno. Pode parecer pieguice: desligue seu celular ou qualquer outra parafernália tecnológica e converse com sua família. Ela é formada de gente.

O QUE É QUE ELE TEM
Olivia Byington

Editora Objetiva

sexta-feira, 22 de julho de 2016

BAGAGEM


Todo mundo carrega uma bagagem de vida. Às vezes leve e às vezes pesada. Uma bagagem de histórias que muitas vezes escondemos. Muitas vezes mostramos... Cada um tem sua bagagem, do seu jeitinho. Com sua marca. Não importa a bagagem de vida que você tem, ela é sua! A importância de quem entra nela é você que decide! Decide com os recursos que você tem. Recursos que você conquistou durante vidas. É uma pena que muitas vezes desconhecemos estes recursos que adquirimos com sacrifício. Por quê? Talvez nem desconhecemos, apenas escondemos com medo. É preciso lidar com nossos fantasmas.

Não é fácil lidar com nossos fantasmas. Abrir nossa bagagem e nos mostrarmos “nus e crus”.  O que vão pensar se fizermos isto? Preferimos viver na resignação. Não queremos opinião. Com razão, muitas vezes nem toda opinião é bem vinda. Nem todo mundo que opina está preparado para palpitar. Falam sem profundidade de assuntos que nos são caros. Sem nenhuma piedade. Desconsideram a nossa construção interior. O melhor é se esconder e viver isolado. Besteira. É preciso abrir nossa bagagem nem que seja aos poucos. Revelando cada pedaço da nossa vida. Gente alcoviteira existe em qualquer lugar, e como...


Realmente não importa a opinião de quem não lhe conhece. Abrir nossa bagagem de vida não é muito fácil. Imagine que na sua bagagem tem coisas dos seus ancestrais que você desconhece e que poderiam ajudá-lo em situações conflituosas. Quantos instrumentos não temos em nossa bagagem e desconhecemos? Muitos! Ali guardados. Ali mofados. Ali esquecidos.  Ali vivos. Bagagem dos seus ancestrais. Bagagem construída no tempo. Bagagens ainda fresquinhas. Todas elas podem se transformar em riqueza de vida. Uma riqueza de como podemos tocar a vida. Tocar a vida com esperança. Tocar a vida com dignidade. Tocar a vida...

terça-feira, 12 de julho de 2016

A HISTÓRIA DE ANTONIA


Antonia Gomes da Silva, mulher da roça. Bonita. Morena, quase negra. Vinte anos de idade. Mulher com a cor da roça, que ganhara essa beleza sertaneja labutando de sol a sol. Moça do sítio. Assim intitulam aqueles que moram na cidade. Roupa simples. Vestido de chita, que realçava sua beleza cabocla. Antonia, de comportamento recatado, com seus sonhos e desejo de morar na cidade e mudar de vida. Cansada da roça. Nunca poderia imaginar que esta mudança do sitio para cidade marcaria tão profundamente sua existência. 

É comum quando uma rapariga da roça troca o sitio pela cidade, que seja para ajudar no sustento da família. Trabalhar. Conforme o tempo, o sítio não supre o sustento necessário da família. Raramente esta ida do campo para a cidade é para estudar. Às vezes até acontece essa coisa de fazer a troca e de dar continuidade nos estudos. Não era o caso da moçoila Antonia. Ela foi para a cidade realmente para trabalhar e ajudar nos gastos da casa. Estudo, nem pensar. Entre os cincos irmãos ela fora a escolhida para deixar a casa da família, por não ter muita intimidade com a terra, apesar de não negar trabalho.  

Tem gente que não acredita que existe destino. Penso que ele existe e ainda se cruza com outros...
Dr. Roberto, médico conceituado da pequena cidade de Palestina, no interior de São Paulo. Não imaginava que aquela mulher morena, marcada com a cor forte do sol, fosse entrar na sua vida e marca-la tão profundamente. Existencialmente. Dr. Roberto, além de médico respeitado, era fazendeiro bem sucedido na criação do gado. O café da sua fazenda era premiado internacionalmente. Zeloso. Café de boa qualidade. Beto, como era chamado pela gente do povoado. Gostavam de chamá-lo assim. Ao chamá-lo de Beto criavam uma relação de proximidade e intimidade. O “doutor” o deixava distante e o Beto era um homem como qualquer outro.

Homem vaidoso quando a prosa era coisa da sua fazenda. Do queijo que produzia. Dos prêmios que seu gado ganhava nos concursos pecuários. Parecia um pavão com peito estufado de tanto que gostava do seu belo pedaço de terra. Sem cerimônia. Gostava de coisas simples. Uma cachaça do seu alambique. Apreciava. Com orgulho! Nunca deixava de atender quando era chamado para socorrer um enfermo. Sempre cumpridor da sua missão. Quando não auxiliava as parteiras na divina tarefa de trazer gente nesta terra, ele próprio fazia o parto. Era adorado.

Habituou-se, em quase todos os dias da semana, logo de manhã, a tomar café feito no fogão à lenha no Boteco do Zé Bigode. Só no domingo não cumpria este ritual diário, tomava café com a família e depois iam à missa. Religiosamente. Homem religioso. Mas durante a semana, ali no bar do compadre Zé, conversava com todos. Contava piada. Homem de boa prosa. Indicava o nome do melhor remédio para acabar com os carrapatos do gado dos sitiantes. Toda esta convivência diária com gente da roça não lhe tirava a autoridade como médico. Respeitado por todos. Homem incansável na atividade de curar as mazelas do povo dali. Muitos sitiantes procuravam-no para se aconselhar. Muitos outros o procuravam para que ele pudesse arrumar uma colocação de emprego na fazenda ou mesmo na cidade.    

Foi com essa coisa de arrumar emprego que ele conheceu seu Geraldinho, sitiante daquela região. Anos antes tinha empregado um dos seus filhos. Num certo dia, depois da prosa sobre o melhor tratamento dos suínos, Geraldinho, com toda intimidade que tinha com o Sr. Beto, solicitou-lhe ver a possibilidade de arrumar um serviço em sua casa na cidade para sua filha Antonia. Justificou o pedido dizendo que o doutor sabia que seus filhos eram trabalhadores. “Justino nunca lhe decepcionou. Não é?” “Mande a menina falar com a patroa, seu Geraldinho. Parece que ela está mesmo precisando de alguém para ajudar na cozinha.” Foi assim que a moça Antonia começou a trabalhar na casa do seu Beto. O dinheiro que ganhava mandava para a família e pouco desfrutava.

Com pouco tempo de serviço na casa de D. Elvira, esposa do Dr. Roberto, Antonia destacou-se como ótima cozinheira. Quituteira de mão cheia. Ganhou a simpatia da casa. Dr. Roberto tratava todos os funcionários com respeito e era por eles considerado um excelente patrão. E assim, os anos foram-se passando. Os filhos nasceram, a esposa se foi.

D. Elvira faleceu ainda jovem, com um câncer que em poucas semanas lhe tirou a vida. Antes da morte da esposa, o senhor Beto jamais tivera atrevimento com Antonia. Porém, com o passar do tempo, foi se afeiçoando pela empregada que agora fazia o papel de mãe. Cuidava dos filhos do patrão como se fossem seus. Os olhares. O sorriso maroto com o canto dos lábios denunciava que ali Já existia um grande amor. Em um momento de intimidade com Antonia anos depois, ele disse sussurrando que ela tinha lhe chamado a atenção. Que sua beleza era impactante. Enchia os olhos. Terminou a conversa dizendo que a amava. Apesar de ele estar viúvo, aquele amor tinha que ser escondido. Os filhos dele não aceitariam que o pai se casasse com a empregada da casa. O amor deles era intenso, mas escondido.

Não demorou que eles tivessem um caso às escondidas.  O doutor pensava em como reagiriam os filhos diante daquela paixão. Como explicar ao pai de Antonia que ele estava apaixonado pela sua filha? O medo e a insegurança o fizeram manter aquele romance escondido. Este tempo escondido teria sua validade vencida. Antonia engravidara do seu amor oculto.

O destino faz as pessoas se cruzarem em suas existências, mas também as distancia. Quando o pai de Antonia ficou sabendo da gravidez da filha, disse em alto e em bom som que não tinha filha desonrada. “Desavergonhada! – gritou para ela. Esqueça que sou seu pai.” E antes que o Dr. Roberto ficasse sabendo que ela estava grávida, Antonia abandonou a casa. O médico só ficou sabendo da sua gravidez pela conversa dos alcoviteiros. Antonia saiu da cidade sem rumo, e durante boa parte da gravidez percorreu o interior paulista até chegar a São Paulo. O doutor, inconformado com o seu desaparecimento, pôs gente atrás. Aonde aparecesse uma noticia de Antonia ele ia, a fim de encontrar seu grande amor. Mas talvez agora fosse tarde demais.

Antonia chega a Santos com dores de parto. O bebê estava prestes a nascer. Dilatação. Os moradores a encaminham à casa de D. Maria, uma senhora que conhecia tudo sobre ervas e reza. Ali poderia receber atendimento. Poderia ser acalentada. Na casa de D. Maria, sofrendo com as dores do parto cada vez mais fortes, espera por poucos minutos a parteira mais conhecida da cidade, D. Catarina. A jovem Antonia confessa a D. Maria que não poderia ficar com aquele filho, pois não teria como criá-lo. As lágrimas tomam conta dos seus olhos e ela diz, gemendo de dor, que não era este o seu desejo.
Enquanto ela é preparada pela parteira, D. Maria corre até a vizinha que tinha uma vontade louca de adotar uma criança. Antes de o bebê vir ao mundo, o casal – Pedro e Ana – corre para a casa de D. Maria para assistir ao parto e ficar com a criança. Realizados.

Nasce o bebê. Um menino mirradinho. Chorão. A mãe, com a voz embargada, pede para D. Catarina não deixá-la ver a criança: não gostaria de guardar sua imagem na memória. O casal recebe o menino em seus braços, os olhos brilhando, e a alegria toma conta de Ana e Pedro. A mãe mal fala com o casal, só pede que criem o menino com muito amor.

Antonia teve uma gravidez difícil, tomada pela solidão. Depois de recuperada partiu em busca de reconstruir sua vida. O que aconteceu com Antonia? Será que encontrou Beto novamente? Conta-se que meses depois ela apareceu na casa de D. Maria, acompanhada de um senhor, em busca do filho.  A senhora que atendeu a porta da casa disse que o casal que o adotara tinha se mudado da cidade e não sabia de seu paradeiro.


Será que o senhor que a acompanhava era o Dr. Roberto? Nunca saberemos. Imagino a dor e o sofrimento de uma mãe que deixa de criar um filho porque as circunstâncias são adversas. 

quarta-feira, 6 de julho de 2016

EU...


                                                       “Se for falar de mim me chame, sei coisas terríveis ao meu respeito” - Tati Bernardi
Ultimamente ando brigando muito contra o meu eu. Eu falo. Eu faço. Eu quero fazer. Eu quero mandar. Eu quero assim do meu jeito. Eu sou assim. Enfim, “eus” que não acabam mais. Eus! Estes “eus” são tão sozinhos! Estes “eus” não agregam, separam. Egoísmo puro. Egocentrismo.

Será que precisamos de tantos “eus” para nos autoafirmarmos?  Será que precisamos destes “eus” para sermos felizes? Será possível ser feliz sozinho? Estes “eus” narcisistas impedem que possamos viver coletivamente. O “eu” exagerado no dia a dia tem dificultado a convivência entre as gentes. É um tentando passar a perna no outro. É um Deus nos acuda. A ética que exigimos do outro passa longe do nosso “eu” autoritário. Uns “eus” que não conseguem enxergar o outro. Não pode dar certo.  
Eu falo o que penso, mesmo... Na lata! Não estou nem aí! Fodam-se os outros. Eu sou mais eu! Pensar e agir desta forma é achar que o mundo tem que girar em torno de si. Não confunda a pessoa autêntica com aquela a quem falta educação. Quem fala e agride os outros, desrespeitando-os, é simplesmente um individualista. Não constrói. Divide e afasta.

Todo dia encontramos gente sofrendo de quase tudo por não saber lidar com seus “eus” doentios. É comum o egocêntrico achar defeito em tudo. Achar defeito nos inimigos e amigos. Este cara é aquele que não consegue se enxergar. Enxerga seus defeitos nos outros. É rapidinho para apontar os defeitos dos outros. Bem rápido para colocar qualquer um para baixo. Por outro lado, ser um pouquinho egocêntrico não é tão ruim assim: funciona como forma de defesa. O que não é saudável é justificar seus fracassos e medos usando seus “eus” para esconder-se de quem realmente é.


Os “eus” sem noção são aqueles chatos que quase ninguém aguenta ficar perto. É o sabe-tudo. É aquele que começa uma conversa e fala sozinho. Uma fala sem vírgula e ponto final. Chuta a bola no escanteio, cabeceia e marca o gol e ainda pergunta sua opinião. Não é fácil. Gente assim é difícil de entender a dor do outro. Entende só da sua dor. É gente que precisa de cuidado. Interrompendo a sua fala eu...