O meu amigo esquisito chamava-se Antonio
Carlos de Jesus e era um sujeito de pouca conversa. Andava todo torto. Relaxado. O rosto todo repleto de espinhas.
Mesmo no calor ou no inverno, andava com uma touca de lã colorida na cabeça.
Achava aquilo ridículo, mas nunca tive coragem de dizer. O cara queria ser
esquisito mesmo! O único com quem
conversava na sala de aula era comigo. Gostava de rock e abominava pagode e
música sertaneja. Aquele rapaz escrachado, todo relaxado e às vezes agressivo
com as palavras, colecionava pétalas de rosas. Inacreditável: o cara tinha mais
de duas mil pétalas de rosas em saquinhos plásticos, separadas individualmente.
O esquisitão do Antonio Carlos chamava os
meninos da sala de “burguesinhos” e as meninas de “patricinhas”. Não escondia
de jeito nenhum que não gostava daquela gente. Os alunos da sala de aula
morriam de medo dele. Ele era um tipo ameaçador. Fazia altos discursos: “Todo
mundo é igual aqui.” “Vocês não têm nenhum referencial. Agem pela onda do
momento da moda. Não conseguem se vestir e nem falar diferente um do outro.
Babacas!” Era o tempo todo ameaçador com os amigos de sala. Era o tempo todo
questionador. Com os professores, dirigia-se a eles chamando-os de “senhor”.
Era respeitado pelos professores. Era ou não era um cara esquisito?
Durante o tempo em que esteve na
escola manteve essa postura de durão. Cara fechada e de pouco amigos. Um dia
aprontou uma brincadeira, oferecendo maconha aos alunos da sala. Muitos compraram
aquele saquinho bem embalado e ao abrir se deram conta de que era bosta de
cavalo seca. Os enganados tentaram uma revolta quando foram alertados pelo
Carlos de como iam justificar que tinham comprado maconha aos professores e aos
pais. Os alunos com cara de besta desistiram da ideia. Carlos era um cara
sarcástico. Tinha um prazer imenso em lubridiar aqueles alunos soldadinhos,
como ele mesmo dizia.
Carlos, além de colecionar de pétalas
de rosas, era um apaixonado por leitura. Sempre tinha uma história diferente
para contar quando parávamos para conversar. De tanto ouvir suas histórias,
peguei gosto pela leitura. O esquisito talvez não fosse tão esquisito assim.
Uma única vez abaixou a guarda de durão e me contou que depois que seus pais
tinham se separado, resolveu viver solitariamente. Resolveu não ter amigos. Não
entrou em detalhes sobre a separação dos pais, e eu nunca quis saber o porquê.
Neste dia sua fisionomia mudou completamente e chorou em silêncio para que
ninguém percebesse sua dor. Foi a única vez que deixou transparecer alguma das
suas fraquezas. Até hoje não entendi
porque me escolhera como o único amigo da escola.
Pensava eu que não soubesse o
porquê da escolha daquela amizade. Com o tempo fui percebendo que também eu era
diferente. Não tinha amizades na escola. Ficava em um canto qualquer, junto da
parede, para não ser percebido. Eu e Carlos éramos iguais. Tínhamos escolhido a
solidão. Antonio Carlos sumiu da escola por uma semana, e mesmo sendo
antissocial os alunos da sala perguntavam por ele. Sentiam sua falta. Com ele
na sala as aulas se tornavam mais interessantes. Depois desse tempo o esquisito
reapareceu, com hematomas nos braços e o rosto inchado. Quando questionado pelo seu tempo de ausência
pelo Professor Malaquias, disse que tinha caído de bicicleta. Um acidente. Na
hora do intervalo das aulas me confessou que tinha sofrido agressões do
padrasto. Só ouvi seu lamento e não perguntei nada sobre o acontecido. Naquele
dia disse que queria desistir da vida. Fiquei em silêncio. As lágrimas corriam
dos seus olhos como uma cachoeira. O sinal do intervalo tocou e entramos na
sala em completo silêncio. Não tocamos mais no assunto.
Dias depois, antes do término do
ano letivo, Antonio contou-me que estava de mudança para outra cidade. Que
aquele dia seria o seu último dia de aula na escola. Pediu-me para não contar
para ninguém da sua partida. Respeitei seu desejo. Quando os alunos perceberam
que ele não apareceria mais na escola, começaram os falatórios. Comentou um
menino com cara de alcoviteiro: “- Fiquei sabendo que o esquisitão foi
recolhido em um reformatório. Com aquele jeito só podia ter acontecido isto
mesmo!” Outro comentou: “- O cara de espinha era folgado. Estamos livres dele.”
Uma menina disse que ele era muito legal, os meninos quando ouviram o comentário,
ficaram com cara de entojo. Um bando de despeitados.
Anos depois encontrei Antonio
Carlos de passagem pelo aeroporto de Manaus e nos falamos bem rapidinho. Bem
diferente do esquisito da escola, ele estava vestindo um terno bem cortado e
usava uma pasta de couro do bom. Disse-me que tinha uma família linda, tinha
estudado advocacia e que a vida tinha mudado muito. Estava embarcando para a
Europa para fazer um curso de especialização na área do direito. Trocamos o número
dos celulares e ele partiu apressado para seu vôo. Quando ele sumiu entrando na
sala de embarque, me deu uma alegria enorme de ter reencontrado meu melhor
amigo de escola. Como aquele amigo esquisito tinha até então perturbado minha
mente! Achava que tinha morrido. Achava que tinha se transformado em gente
ruim. Nada disso tinha acontecido.
Meses depois marcamos um encontro
com nossas famílias e passamos um final de semana maravilhoso. Conversamos
horas a fio. Demos risada da turma da sala. Ele se lembrou do dia que vendeu
bosta de cavalo como maconha. Rimos muito. Não falamos de tristeza. Não tocamos
no assunto das lágrimas, da sua esquisitice. Me pareceu que isso ainda era
dolorido. Mas sua história teve um final feliz.
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