Venha compartilhar um pouco do trabalho que realizo como historiador e professor da cidade de Cotia. Mergulhe no passado das pessoas que construiram este lugar, recorde fatos marcantes que deram identidade cultural a esta cidade.

quinta-feira, 6 de outubro de 2016

HISTÓRIA DE ELIANE: MENINA DO PANCADÃO


Eliane estava absorta em seus pensamentos. Uma viagem ao passado. De cima da laje, avistava as casas ainda semi-acabadas, e a sua existência passava ali como um filme que lhe trazia recordações amargas. Lembranças da pré-adolescência. Lembranças da adolescência. Lembranças da vida adulta que se misturam com toda sua história criando a possibilidade de que tudo poderia ser diferente. Sentimentos de culpa.  Três filhos antes de completar 23 anos. O envolvimento com droga e álcool por longo período afetara-lhe o raciocínio. Uma dificuldade imensa para terminar um pensamento. Lamentava insistentemente como tudo poderia ser diferente.

Aos treze anos, grávida, nasce João, pai desconhecido. Durante dois meses tenta esconder a gravidez dos pais. Ficara grávida em um pancadão de final de semana. Completamente bêbada e drogada, dançava alucinadamente em cima de um carro e a cada música tirava uma peça de roupa. A transa acontecia ali, na frente de todos. Uma transa, outra e mais outra, assim atravessava a noite. No dia seguinte a angústia. No dia seguinte, a culpa. Não lembrava com quem tinha tido uma relação amorosa. Não lembrava nem se tinha tido relação sexual. Eliane se sentia um lixo. Travava uma luta interna durante a semana, dizendo-se que não iria ao pancadão do final de semana. Quase sempre perdia a luta.

Começou a frequentar estes bailes de rua com onze anos, escondida dos pais. Quando os pais dormiam, depois de um cansativo dia de trabalho, pulava a janela do quarto e os amigos já a esperavam na esquina da rua da sua casa. Os pais, cansados de tanto do trabalho, viam a educação da filha ficar cada vez mais distante das suas mãos. Aos quinze anos outro filho. Nascia Vanessa, pai desconhecido. Filha do pancadão. Os pais aceitaram mais um neto sem qualquer questionamento. Sentiam-se impotentes diante de tal situação. Sentiam-se culpados, e a única forma de pagar era com a omissão. Eliane, alcoólatra e viciada em drogas pesadas, não conseguia se ver fora daquela situação. Ali era seu universo, mesmo que fosse destrutivo. Não percebia sua autodestruição. Ali era seu mundo. Não conhecia outro mundo a não ser aquele.  

Eliane tentava buscar na memória sua infância, que parecia estar tão longe, diante da sua pouca idade. Outra gravidez aos dezoito anos. A memória da infância se distanciava cada vez mais. Agora nascerá Pedro. O pai, Humberto, com apenas dezenove anos. Alcoólatra e viciado em drogas pesadas. Além de Pedro era outra boca para ser sustentada pelos pais de Eliane. Até o nascimento de Pedro, rolava o maior amor entre Eliane e Humberto. Um breve tempo depois do nascimento do terceiro filho, as agressões.  Eliane suportava tudo com resignação. Aquela vida era seu destino, que deveria ser seguido à risca. Um tempo depois Humberto aparece morto, jogado em uma vala como um animal. O motivo seria uma dívida que não conseguira pagar. Mais um número nas estatísticas, sem vida e sem alma.

A menina do pancadão já estava cansada e velha com 23 anos de idade. Já não era carne nova, como diziam no meio... Já não servia para dançar em cima dos carros. O corpo amarrotado pelo tempo. A rusga de quem tem muita idade já não convence quem deseja carne nova. Refugo! O cheiro do álcool e a droga barata já não atraem. Os amigos e amigas de antes já se foram ou estão em situação igual à de Eliane. Mercadoria passada. Uma última tentativa de reconquistar a vida aparece no final da rua, onde morava o padre da igreja. Os cânticos chamaram-lhe a atenção. Começa a frequentar aquele espaço sagrado e tem a promessa que Jesus lhe salvaria das suas mazelas. Por duas semanas sem uso de drogas e bebidas, lúcida da sua bagagem pesada, na laje, sob o olhar da lua, corta os pulsos. Foi encontrada no dia seguinte sem vida. As crianças crescem e estão bem, com a ajuda dos avós. Apenas mais uma vida...

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