Revisitando meu baú da História de Cotia, encontrei o livro “Memória & Imagem”, que publiquei no final da década de 90. Dei aquela folheada e fiquei encantado com a apresentação do livro, escrita pela professora Ecléa Bosi. Encantadora. A sensação com que fiquei depois da leitura é a da simplicidade que usa ao escrever, e que deixa aquela vontade louca de conhecer cada espaço citado. Leiam comigo! Liberem suas sensações.
Carta de Ecléa Bosi
Cotia,16 de março de 1999
Meu caro Marcos,
Li, com muito prazer, as memórias dos velhos cotianos que você recolheu com atenção e carinho. Memórias risonhas na sua maior parte, porque esses velhos transbordam de simpatia e amor pela vida. Tenho uma raiz muito funda que me prende a esse lugar.
Meu avô, Amadeu Strambi, cultivava uva em São Roque; ali, no alto da serra, passei belos anos de minha juventude. Nas suas noites frias me aqueci no grande fogão de lenha no pátio da Matriz, onde se preparavam os pastéis, o quentão das festas e quermesses. Ao seu redor se apinhavam as crianças, e as velhinhas, embrulhadas nos xales, olhavam as chamas e recordavam os bons tempos. Aquele fogão de lenha era o coração generoso da cidade que pulsava. Mão impiedosa o derrubou. O pátio da comunidade hoje é estacionamento.
Adeus fogão de lenha... adeus velhinhas tiritantes, adeus memória!
Conheci dona Didita, mãe de dona Zizinha, esposa do Sr. Amantino. Cega, costurava e cozinhava com perfeição. Mulher de rara inteligência, feliz de quem pudesse haurir a sabedoria de sua conversa. No casarão onde morou, na rua principal, tudo é venerável, desde as tábuas do assoalho até o espírito da família que, sei, conserva os altos valores de dona Didita.
Conheci, também, o casal admirável, Ana e Paulino Nascimento.
Os “casos” do Sr. Paulino eram notáveis; sua infância de menino de roça, quando o carro de Washington Luiz encalhou no barro da estrada... O presidente foi socorrido pela família do Sr. Paulino, a quem prometeu recompensar com uma escola na região, mas acho que esqueceu depois o prometido.
Ela tratava os doentes com homeopatia, pesando as doses dos remédios nos pratos de uma balança com minúsculos pesos.
- Dona Ana, a senhora levou para o céu a sua balancinha dourada com que curou tanta gente?
E agora, evoco por fim, aquela que foi a alma folclórica de Cotia. Dona Leonor, a que foi parteira e benzedeira.
Tive o privilégio de visitá-la um dia, quando, sentada no leito, penteava seus cabelos; hora ideal para contar histórias e revelar segredos. Quem não assistiu às festas da capela de dona Leonor, no km 40? As ladainhas, toadas de viola, eram cantadas em latim por um ‘capelão’ (as reformas litúrgicas não tinham lá chegando, ainda). Em mais de um livro sobre cultura popular foi descrita a beleza pungente daquelas devoções.
Dona Leonor, dona Didita, dona Ana, abençoem Cotia! Salvem a cidade das indústrias poluidoras, dos prédios que a desfiguram. Abençoem seu ar, suas águas, as matas que a rodeiam. A alma da cidade estava presa nos lugares saudosos que a ignorância e a ambição destruíram. Mas os velhos memorialistas, cujas lembranças lemos com encanto suave neste livro, ensinarão aos jovens a defender sua cidade.
E aqui me despeço, caro Marcos, de você e deles, com respeitoso afeto.
Ecléa Bosi
Professor Marcos Roberto Bueno Martinez
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